24.6.08

O que algumas luminárias não vêem

O que alguns insistem em não querer ver. Porque não se trata de procurar encontrar dificuldades num processo completamente intrujão e intrujado: trata-se de defender uma União Europeia construída com os contributos dos seus cidadãos. Mas este - o que democracia e da participação -, deve ser um conceito difícil de entender.
Claro que não cometerei a indelicadeza de deixar uns links para sites tipo Democracia para totós. Porque acredito de tanto esclarecimento(?) não necessite...

«(...) Toda a gente percebeu que a saga da aprovação do Tratado de Lisboa, depois de Maastricht e de Nice, tem como principal objectivo o de retirar poder aos povos e de lhes administrar as soluções das elites esclarecidas. O Tratado foi inventado para retirar aos povos a possibilidade de os discutir e aprovar. O Tratado é incompreensível? A Constituição é absurda? Tanto melhor. São documentos que, justamente, não devem ser compreendidos. E que oferecem explicações úteis para a indiferença crescente dos cidadãos. Votam em eleições e em referendo, dizem os iluminados, por razões nacionais e não por razões europeias! Votam, acrescentam, por causa da crise económica, das desigualdades, dos preços dos combustíveis, das questões laborais e da imigração. Na Irlanda, então, para cúmulo, dizem eles, o “não” foi motivado pelo aborto, pela eutanásia e pelos impostos. Tudo, asseguram, questões locais, paroquiais, nacionais, sem a importância dos reais problemas europeus. Estes argumentos, infantis e destituídos de qualquer inteligência, são repetidos candidamente por todos os servos, sobretudo juristas, da plutocracia europeia. E ninguém, entre essas luminárias, se deu ao trabalho de reflectir nas últimas eleições europeias que deram dois resultados inesquecíveis. Primeiro, uma enorme abstenção. Segundo, o facto de quase todos os que perderam essas eleições foram recompensados, directa e indirectamente, com cargos, responsabilidades e decisões nos actos que se seguiram. Chirac, Schroeder, Tony Blair e Durão Barroso, entre outros, perderam as eleições, mas, pelo jogo do federalismo, moldaram a União que se seguiu! De qualquer modo, ficámos a saber, mais uma vez: para os dirigentes europeus, o emprego, os impostos, a liberdade, a demografia, a família, o sistema de saúde, a educação, a idade de reforma, a legislação laboral e as desigualdades sociais não são questões europeias. Não são problemas relevantes!
(...) A União vai sair, aparentemente, desta crise. Dentro de um ou dois anos, uma nova engenharia terá sido encontrada. Dentro ou fora, a Irlanda deixará de incomodar. Novas perturbações serão evitadas por novos mecanismos. Alguém virá dizer que a crise está ultrapassada e que a União entrará numa nova era. A mecânica da Comissão, do Conselho e do Parlamento Europeu estará oleada e preparada para funcionar a 27 ou mais. As decisões serão mais fáceis. Evidentemente, sabe-se, haverá alguns problemas. Na economia, na sociedade, no comércio externo, na ciência e na tecnologia. Forças centrífugas em acção. Dificuldades no emprego e no crescimento económico. Problemas sociais e demográficos. Conflitos laborais e desigualdades sociais. Deriva dos sistemas de saúde, educação e segurança. Aumento dos preços da energia e dos alimentos. Certo. Mas são todos problemas locais. Nada disso é europeu. A grande Europa, a grande União passa ao lado disso. Passa ao lado de questões menores.
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António Barreto, «Retrato da Semana» - «Público» de 22 de Junho de 2008

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«(...) A "Europa dos cidadãos" e a "aproximação entre os cidadãos europeus e as instituições europeias", chavões obrigatórios em qualquer discurso politicamente correcto, perdem imediatamente o seu prazo de validade quando esses mesmos cidadãos têm ousadia democrática de votar contra as arquitecuras políticas traçadas pelos dirigentes.
A forma como as elites europeias estão a lidar com o "não" irlandês está a fazer mais para aumentar o afastamento dos cidadãos da construção europeia do que a contribuir para a sua aproximação.
Referirem-se ao voto do povo irlandês como "um problema" que precisa de uma "uma solução" não pode deixar de ser lido como um sinal de grande desprezo pela voz das opiniões públicas que, a prazo, se transformarão em "problemas" cada vez maiores.
(...) Se os cidadãos não entendem a União, a culpa é da União e nunca dos cidadãos. Enquanto esta ideia não for genuinamente assimilada nas capitais nacionais e em Bruxelas, o fosso que separa eleitores e construtores não vai parar de crescer.»

Paulo Ferreira, editorial do «Público» de 22 de Junho de 2008

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