6.1.09

Roubei-o à Sónia

Sónia Andrade, com o seu estilo inconfundível oferece-nos hoje uma receita de cladeirada, feita com ternura, nesta pré-publicação em exclusivo do Diário de Odivelas do seu livro 'A olho'.



Ficaram no fundo do congelador para uma ocasião especial. Chegavam para três pessoas, fossem as ditas grelhadas ou estufadas, ou algo do género. Deixei-as em paz até àquele domingo.

Afinal tinha-se despachado mais cedo, conseguia chegar a Lisboa ainda esta noite. Soube bem sabê-lo a caminho, estava irritada, não me apetecia nada, nem coisa nenhuma. Apeteceu-me estar com ele. Desliguei o telefone e fui direitinha ao super-mercado. Para o jantar só me faltava um pimento e cebolas mas pus no cesto leite, queijo e fiambre, pão, umas bolachinhas e umas laranjas. Queria que houvesse na cozinha aquele essencial que podemos comer sem cozinhar ou esperar que a anfitriã acorde. Queria que ele se sentisse à vontade.

Apanhou-me de táxi, ajudou-me com os sacos e largou os dele. Estávamos de novo frente a frente. Tirando uns cabelos brancos, que não condizem com um ar de criança que se sempre lhe vi, estava igual, mais bonito até. Estava com ar de homem. Falámos com calma, sem pressas, sem discursos de saudades. Não nos víamos há cinco anos, (ou será seis?) mas falamos, ao longo dos anos, por telefone e pela Net. Foi assim que acompanhei os seus amores e desamores, o trabalho, os problemas, a vida. E ele a minha.

Não havia pressa mas havia que começar a fazer o jantar. Pu-lo a descascar batatas e a cortá-las em rodelas grossas. Admirei a naturalidade com que o fez. Depois tomei conta do balcão e dei-lhe uma garrafa de vinho branco para abrir. Não foi fácil. Chegámos até a pensar a enfiar a rolha para dentro mas ele foi persistente e lá se ouviu o clássico ploc!

Enquanto escutava a tranquilidade com que falava, fui tirando as entranhas às ditas. Depois dediquei-me a cortar cebolas às rodelas enquanto falou das lágrimas que verteu por causa da outra. Daquela que era a tal, à que virou as costas, apesar dos concelhos contrários que lhe dei naquela tarde, primeiro por telefone, depois pelo MSN. Lembro-me da bonita tarde de Primavera que estava. Sei que me deu razão, mesmo antes de tomar a decisão, mas não conseguiu fazer de maneira diferente. Cortei o pimento às fatias. Só nós é que podemos viver a nossa vida, não é? Enquanto falava do coração partido, esmaguei alhos. Falava sem dramatismo, sem culpa, apenas com objectividade, tal como fazem as pessoas crescidas. É importante conseguir ler a própria vida.

Pus o tacho ao lume com o azeite a aquecer. Olhei-o de alto a baixo, estava atraente, com um corpo delineado. Lembrei os dias em que desejei aquele corpo e o levei por caminhos desconhecidos. Houve uma altura em que aquele corpo não sabia bem como moldar-se a outro, por mais que quisesse. Dei-lhe o meu por fases, por toques, por movimentos ligeiros, ternos. Foi ternura, e não paixão, que levou o meu corpo de encontro ao dele, é a ternura que nos mantém juntos, apesar de separados por um avião.

Mudámos para o tema da fé. Enquanto ele falava sobre o caminho que segue, pus uma camada de cebolas e alhos no tacho, por cima uma camada de rodelas das batatas que cortou para nós, depois outra camada de lulas. Sim, decidira fazer-lhe uma caldeirada de lulas. É substancial e faz-se a si própria, permitindo espaço para a conversa, que é o que mais interessa. Caldeirada é às camadas e não mexer mais. Em lume brando.

Enquanto pus ao calhas cubos de tomate lá para dentro, falei-lhe da minha antiga fé e temperei tudo com o respeito e contenção que tenho para com todas as religiões. Sal grosso, pimenta, uma folha de louro, pimentão-doce e uma pitada de orégãos.

Voltei a repetir a ordem das camadas enquanto lhe expliquei que para mim a ordem do caos é só uma: o amor. O amor move montanhas, faz milagres, o amor é a única coisa que interessa. Como quem não quer a coisa, pus um raminho de coentros na panela e rectifiquei os temperos despreocupadamente.

Falámos do trabalho, da nossa parca arte. Das histórias que passam pela nossa voz, pela nossa escrita e pela criatividade de que não abdicamos. Das pessoas, as que conhecemos e as que trabalham connosco. Perdida na conversa esqueci-me de pôr a mesa. Desliguei o lume e dei um tempinho para apurar.

Enquanto falava do equilíbrio que tem hoje a comer, servi a caldeirada e fui buscar o pão que me esquecera na bancada. Jantamos com o tema da alimentação equilibrada à mesa. Quando pediu para repetir, aí, fiquei orgulhosa. Acendi um cigarro enquanto o vi comer o segundo prato com deleite. Fiz café. Para a sobremesa ficaram mais histórias, mais memórias.

Almocei caldeirada dois dias depois. Estava picante de jindungo de malaguetas indianas que fiz há tempos. Claro que estava boa. Foi temperada com amizade e ternura. Sem mexer.


Sónia Andrade

Nota: Obrigado pela nossa amizade

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