Acordou...
Não foi o barulho da chuva fina que lá fora ia teimosamente regando o jardim... Nem foi o despertador cujo mostrador, como todos os fins-de-semana, fizera questão de virar ostensivamente para a parede... Nem sequer foi um sonho bom ou mau, ou mesmo indiferente, nem frio, calor, fome ou sede...
Acordou...
Simplesmente.
Aos pé da cama, o gato enrolado abriu os olhos para os fechar logo de seguida.
Com o braço estendido, num lento e largo movimento, afastou as cobertas.
Sentou-se, abriu os braços e, num longo bocejo, espreguiçou-se.
Levantou-se e dirigiu-se à cozinha, descalça, contrariando um dos eternos conselhos da mãe. Vagarosamente. Quase cambaleante, afastando o cabelo da cara com a mão direita enquanto, com as costas da mão esquerda, limpava o sono dos olhos.
Adivinhando o pequeno-almoço o gato levantou-se de um salto e seguiu-a, enrolando-se dengosamente nas pernas das calças do pijama de flanela. Interesseirão, pensou e sorriu enquanto servia o Bowie. No dia em que chegara, um amigo comparou-o ao cantor por ter um olho de cada côr, riram e o nome pegou.
Café, preciso de café, disse e sorriu novamente ao aperceber-se de que estava a falar sozinha.
Aqueceu um resto de “chafé” da véspera no micro-ondas, pegou na caneca e foi sentar-se no sofá.
Olhou para o telefone em cima da mesa e decidiu ligar-lhe. Sempre fora mais adepta das mensagens escritas, mas ele insistia que gostava de ouvir a voz dela e ela, secretamente, gostava de que ele gostasse.
Bom-diaaa... disse arrastadamente com a voz ainda suja do sono, Já acordei... E foram falando mais um pouco, sem dizer nada, como aliás convém àquela hora.
Quando desligaram, ele ficou a olhar para o telefone por alguns instantes e sorriu. Gostava dela. Gostava da voz dela. E gostava da voz dela ao acordar, um pouco rouca e ainda mais melosa do que o costume. Sorriu de novo ao imaginá-la no pijama com gatinhos, cabelo em desalinho, descalça (contrariando um dos eternos conselhos da mãe), sentada no sofá, braço esquerdo à volta dos joelhos encostados ao peito, caneca de café morno pendurada na mão direita e aquele olhar verdejante perdido no mar de inverno para lá da janela. Bela... Dona daquela beleza que só quando se conhece e se ama se consegue ver... Bela como só ele sabia...
Imaginou-se a abraçá-la... Sorriu, com aquele sorriso sorridente, que os amantes conseguem sorrir e que os outros acham ligeiramente, enfim... parvo.
E sorriu assim, parvamente, o resto do dia...
4 comentários:
Lamento que não escrevas com mais frequência... Está magnífico!
Gostei imenso de ler. Está fantástico.
Faço minhas as palavras da Blue. E é difícil dizer mais de um post assim.
Bom texto!
Abraço
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