O deserto em que se transformou a corrida para a eleição presidencial é, grosso modo, a prova provada de como definha a democracia portuguesa, submersa numa espécie de conluio onde se baralha para dar de novo. As mesmas cartas, que é como quem diz as mesmas caras há décadas e décadas, sem variações, sem mudanças, sem nada.
Entre o folclore de esquerda (quanto mais ridículo e antiamericano melhor, de preferência polvilhado com um romantismo poético ou com um pézinho de dança) e a pseudo direita disfarçada ou travestida de qualquer coisa de fundo que oscila entre o sebastianismo puro e o messianismo milagroso (embora não haja conhecimento de nenhum deles ter aterrado por aí para salvar a “ditosa pátria” como lhe chamou Vasco Pulido Valente), os candidatos que até agora se apresentaram revelam o pior do conservadorismo e o pior da política que por cá temos. São eles os principais avalistas do actual marasmo, já endémico, português.
Nada tenho contra os cidadãos que “livremente” se apresentam a estas eleições. Aliás, há dez anos que sabemos, por exemplo, que o Dr. Cavaco seria candidato apesar de muita gente ter andado a alimentar crónicas e novelas que metiam o Dr. Rebelo de Sousa, o Dr. Santana ou o Dr. Balsemão. Para além da irrealidade de certas coisas, isto prova que as notícias são cíclicas (ainda recentemente o DN de cá deu um outro belo exemplo levantando pela enésima vez a questão da sucessão do Dr. Jardim).
Ao longo de todo este tempo, o Dr. Cavaco soube por isso gerir o silêncio como ninguém (o Dr. Portas hoje faz o mesmo de forma brilhante e inteligente) enquanto que outros se ocupavam das questões menores da literatura de cordel.
Do lado esquerdo do espectro político português, o Dr. Alegre, o Dr. Soares, o camarada Jerónimo ou o inefável Dr. Anacleto Louçã, parecem uma banda de província apostada em alimentar arraiais e festas populares. Nada os distingue, nada os diferencia; todos prometem elevado sentido de Estado, um Estado protector, maior justiça e estar atentos aos movimentos (talvez perigosos e pouco transparentes) que impelem a sociedade para um neoliberalismo atroz e desumano; no fundo, um conjunto de ideias vazias, de chavões políticos que têm como único destino a gaveta onde o Dr. Soares um dia meteu o socialismo. Mas cantam todos alegremente e todos gostam de divertir o povo. Louve-se pelo meio a vontade férrea de se destruírem uns aos outros e de terem avançado com as suas candidaturas baseados na estratégia do dono da bola: quem traz a bola joga sempre. Por isso o Dr. Cavaco não tem adversários. A esquerda neste momento é adversária de si mesma, sinal claro das suas divergências e da sua crise existencial que muito tem a ver com questões programáticas, convém não esquecer. Mas aqui dou a mão à palmatória: o Dr. Cavaco também tem um programa que parece ser uma sucessão de equívocos e de lugares-comuns (confesso que ainda não li nenhum dos programas dos candidatos e que me baseio apenas naquilo que leio nos jornais que cobriram as respectivas cerimónias de apresentação dos mesmos).
Entremos agora na questão do apoio ao Dr. Cavaco. Não sou cavaquista. Nem apoio o Dr. Cavaco. E não apoio o Dr. Cavaco por vários motivos. Em primeiro lugar, porque o Dr. Cavaco é de facto o pai do Portugal modernaço, logo um dos principais responsáveis pelo actual estado de coisas, incluindo o célebre monstro por ele criado mas posteriormente “autocriticado” num célebre artigo de opinião. Em segundo lugar, o Dr. Cavaco é especialista em estratégias que metem sempre, apenas e só, as suas ambições pessoais (quem não se lembra do célebre tabu que ajudou a enterrar um pouco mais o PSD?) destruindo à sua passagem o interesse colectivo do partido onde milita. Em terceiro lugar, não vejo o Dr. Cavaco como a “moeda boa” que vem expulsar a célebre e cancerígena “moeda má”, embora ele tenha ajudado a deitar abaixo um governo liderado pelo PSD por muito menos (estranho a falta de memória repentina de muitos sobre este assunto). Em quarto lugar, o Dr. Cavaco não passa de um político mediano que durante muito tempo revelou manifesta incapacidade de decisão. Por este motivo, não vejo em que é que ele poderá ser perigoso para alguém. Para Sócrates, ao contrário daquilo que muitos vaticinam, ter o Dr. Cavaco em Belém será ouro sobre azul e uma garantia quase plena de sobrevivência política.
Por fim, entrava na questão lançada pelo VPV sobre o pôr a andar toda a gente passado um ano e que o Bento diz que eu esqueci. Para começar, não tenho de comentar todos os artigos que se escrevem sobre este assunto. Apenas fiz referência ao artigo do Dr. Barreto porque me pareceu interessante e certeiro no que aos erros do Dr. Soares diz respeito. Mas em frente. Até porque a questão é interessante.
Eu gosto muito do Vasco Pulido Valente. Aliás, desconfio mesmo que haja mais algum cronista no reino com a sua capacidade de síntese, de precisão, de acuidade e de previsão. VPV é muitas vezes brilhante em toda linha e os artigos publicados às sextas, sábados e domingos são por mim religiosamente guardados. Mas nesta situação VPV parece ter ignorado três coisas: primeira, que Cavaco vai trabalhar no primeiro mandato para garantir um segundo automático, o que o impede de levantar muita celeuma ou mesmo de afrontar gravemente o governo; segunda coisa, que a estratégia de Cavaco é individual e não da direita ou do PSD como muita gente anda por aí a arengar (de Vital Moreira a Mário Mesquita, especialistas em agitar espantalhos); terceira, que o Dr. Marques Mendes é actualmente o líder do PSD, e um líder fraco por sinal. Logo, antes de provocar qualquer “golpe palaciano” o Dr. Cavaco tentará colocar em posição os seus apaniguados de sempre: a Dra. Ferreira Leite e companhia mais um tal de Borges que é figura muito conhecida e vice-presidente de uma instituição financeira qualquer, que anda louco para ser primeiro-ministro. Ai sim, teremos o cavaquismo revisitado e pronto para eventualmente dar o golpe. Mas isso não será no espaço de um ano. Nem de dois ou três. E o Eng. Sócrates não é o Dr. Santana, apesar das trapalhadas evidentes comodamente caladas e ignoradas na comunicação social.
Quando o tempo do Dr. Cavaco chegar (mostrando que Parménides tinha razão e que de facto nada muda) talvez aí o Vasco Pulido Valente escreva “Esta Ditosa Pátria – II Volume”. Para rirmos um pouco, já que tristezas não pagam dívidas. E para guardarmos na estante, e irmos folheando de quando em vez para relembrarmos esses tempos. Tal como agora faço com o seu livro original de capa cor de vinho deliciando-me com a prosa divinal do homem e com os absurdos tempos do Dr. Cavaco.
Resta-me, como último parágrafo, dizer que jamais votaria à esquerda. Mas neste momento ainda não vi nenhum candidato da direita.