29.12.06

Recuperado. Escrito há muito, muito tempo...

UM CONTO

Bar de Alterne, Funchal. Madrugada de um sábado qualquer. Noite fria.

Entramos em bando, escada acima, depois de nos ser cedida a passagem por um homem com cara de poucos amigos, entre uns risinhos que pretendiam disfarçar a excitação do momento e a adrenalina pura de quem entra num sítio desconhecido. Era ali o fim da noite.
A despedida de solteiro só ficaria completa depois daquela visita especial que é um ritual instituído, que toda a gente conhece mas que ninguém comenta. Sem aquilo nada teria ou faria sentido. Pelo menos na memória, na importância, no cerimonial que de cada vez que alguém se casa se assume como espécie de passagem para uma nova etapa da vida e como demonstração pública, ou privada, da sua pseudo-masculinidade.
No primeiro andar a sala é escura, com mesas de madeira muito baixas e sem qualquer piada. As paredes estão vestidas de espelhos pintados com alusões ao natal e com enfeites coloridos do mais medonho que já vi. Não consigo saber se as mesmas são deste ou de outros natais. Mas isso ali não interessa. Os rapazes estão agitados; em grupo os rapazes são sempre mais fortes, mais corajosos, mais inventivos. Mais audazes. Mas também mais palhaços e agressivos. Os mimos variam entre o puro sadismo, a ofensa gratuita e o directo ao assunto. Saber quanto é para o show, para a dança, para o espectáculo de strip é a pergunta do momento. Euros não faltam. Que nos satisfaçam o pedido.
As profissionais do sector, utilizando linguagem sindical, estão estrategicamente sentadas, sós ou em grupo. Fumam e bebem. Umas de mini-saia outras de calças, mas todas têm em comum o facto de serem simplesmente horrorosas e vestirem-se espalhafatosamente. Aliás, umas até conseguem vestir-se sem roupa o que para a maioria das mulheres é um rude paradoxo. Têm caras sofridas. São velhas e novas mas de idades indefinidas. Talvez vinte. Talvez trinta. Uma, pelo menos, seguramente cinquenta. Outra, sozinha numa mesa, está em gravidez avançada, não sei se de um cliente, se de um namorado a quem sustenta algum pernicioso vício. Não sei. Há ainda outra que se diz brasileira, mas a quem se nota a pronúncia forçada e uma que diz vir de Lisboa. A concorrência deve estar a apertar.
Ali há muito que não há esperança. Nem nas novas, nem nas velhas, nem na grávida, nem na brasileira, nem na lisboeta. Nada. Todas sabem que aquilo as desgasta, que as desgastou, que o seu futuro, e parte do seu passado, está entre aquele lance de escadas e as quatro paredes que as prendem àquele sítio ou ao andar de cima onde mais intimamente satisfazem desejos e fantasias dos eventuais clientes, habituais ou esporádicos, tal e qual como acontece agora no seu presente. Não passam dali. O seu sorriso, a sua conversa, nunca as levará mais longe; dali nunca fugirão do pesadelo em que mergulharam as suas vidas há muito tempo quando Deus e o mundo lhes viraram as costas e sós decidiram enfrentar o seu destino. Quem chega ali, não desce mais: bateu no fundo e vive na mais abjecta decadência e sujeita-se ao mais infame dos tratamentos.
Tudo é alimentado por um bar e por uma cabine de dj que são cuidados pelo mesmo indivíduo que faz de porteiro, um indivíduo carrancudo que não aparenta ser muito forte (mas que deve saber truques de karaté de certeza absoluta), num verdadeiro três em um. Não há tempo a perder. Numa última instância uma delas ajuda a servir e muda a música ambiente. Basta para satisfazer as poucas necessidades da casa vazia para um sábado. Para além de nós, conto dois clientes numa já animada bebedeira. Estão sós. Nenhuma das moças os acompanha e nenhuma delas parece se importar com isso. Bebem cerveja. Nestes sítios é conveniente que assim seja: beber coisas que possam ser ingeridas pela garrafa. É higienicamente mais seguro. Eles personificam outro tipo de decadência: a solidão dos homens; o seu desespero; o alcoolismo; a queda vertiginosa ao abismo daquele submundo estranho mas que visto nos filmes é altamente perturbador, aliciante e, quem sabe, até viciante.
Escolhemos finalmente uma qualquer moça, magra, muito magra, das novas e que dizia ser cá da terrinha, que fez o show com um mínimo de profissionalismo exigido. Acabava de garantir o seu rendimento mínimo da noite. Isso era importante. Estava satisfeita. Nós ríamos (também faz parte da decadência), e mostrávamos satisfação plena por aquele momento (também faz parte da mesma decadência). Estava finalizada a nossa missão. Estávamos prontos para ir embora. Lanço um último olhar: elas continuam impávidas. Sinto agora que aqueles enfeites de natal não estão ali desde o ano passado: estão desde sempre porque só sendo sempre natal se consegue continuar a sobreviver ali. Os olhos não mentem, não conseguem mentir nem esconder a tristeza que os alimenta. Cada uma tem um percurso de vida que conta misturando mentiras que se tornam verdades e verdades enriquecidas com mentiras. Olho e pergunto-me: a quem interessa as suas histórias sempre iguais e sempre diferentes? Ali, a ninguém seguramente.