A manhã apanhou-me entalado entre um camião-grua que muda lampadas e um taxista agarrado à buzina, num caminho sem retorno.
Tá a começar bem, pensei eu, enquanto fumava um cigarro encostado à porta do carro, como se o mundo fosse um sítio que me desse tempo para ali estar, agarrado ao cigarro, num intermezzo entre dois actos. Como se o mundo se permitisse fazer parar de chover só para que eu acendesse um cigarro e visse que o mar ainda existia no intervalo das duas casas velhas e para que sentisse o cheiro do canteiro molhado entre os anéis de fumo e para que visse o fio de água que burbulhava entre as pedras da calçada e para que o dia fizesse de sentido. Mas só por minutos. Naquele intermezzo entre dois momentos lógicos.
A rádio tocava notícias com o tom de voz factual de quem se leva a sério e que por isso não sabe da existência das duas casas velhas e do mar que as divide num ângulo absolutamente preciso, negando também a evidência da buganvília de flores vermelhas que trepa por um balcão e dizendo que das calçadas não brotam nascentes e que os anéis de fumo não cheiram a terra molhada. Nada disso é real. É só um intermezzo. Como tal, não merece ser comentado nesta estação
(Foi dificil explicar ao taxista porque ráio de carga de água ainda ali estava quando as lâmpadas já tinham sido mudadas e quando as buzinas soavam como sinos de uma catedral.
- É só acabar o cigarro...
- Épa, despache-se lá c'não ainda perco o serviço dos ingleses!
É dificil explicar o sentido da vida a um tipo de conduz um carro amarelo com riscas azuis. Dizia-lhe o quê? Que só existem dois actos lógicos nesta ópera fandanga, nascer e morrer, unidos por um intermezzo que deve ser belo, suavemente intenso?)
- É só acabar um cigarro. Mais uma passa e já tá...
- Despache-se mas é!
Foi o que eu fiz...
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