11.11.09

Bruno Fernandes

Conheço o Bruno Fernandes desde criança. Jogámos à bola centenas de vezes, ora num campo de alcatrão entre prédios, com tábuas a fazer de balizas e com os vizinhos sempre à espreita de uma bola chutada por um qualquer "Futre" de 14 anos directamente para as suas varandas, ora em torneios de bairro nos quais eu desempenhava o melhor que podia o papel de guarda-redes e o Bruno era a estrela da companhia, numa equipa do "Castanha" que contava ainda com o genial "Fominha", um "gosma" que não falhava a meio metro da linha de golo, com o "Capela", um médio incansável e caceteiro, com o "Sopas", o dono de um pontapé tão forte como desenquadrado e com o dito "Castanha", que ostentava invariavelmente o número 10 e a braçadeira de capitão e pagava a "milhanga" devida em caso de vitória - confesso que o frango assado e a imperial do triunfo, a dita milhanga servida no bar da bomba de gasolina, fazem parte do meu universo das mais queridas memórias juvenis.

Imprevisível, o futebol do Bruno enchia os ringues. Entre "nós cegos" a adversários aturdidos e passes de morte para o "Fominha", a nossa estrela coleccionava arranhões e hematomas, fruto de marcações impedosas de rivais como o "Cavalinho", uma mistura explosiva de Mike Tyson com Paulinho Santos pela forma como batia desalmadamente utilizando os pés, as pernas, os braços, os punhos e o que desse mais jeito, como o "Félix", como o Paulo "o Russo", que entrava em campo com botas de "cowboy" de bico afiado intimidando até o mais valente dos defesas contrários, como o "Papa Bolos", que pela sua notória falta de habilidade acertava, quase sem querer, nos joelhos de quem por azar lhe parava à frente, como o Rui "o Castanha", irmão e arqui-rival do nosso "Castanha", ou como muitas outras vedetas dos cimentados campos daqueles tempos.

Apesar das marcas de guerra, o Bruno não se assustava. Divertia-se tanto a jogar à bola que encarava os pontapés e cotoveladas com que o brindavam como o preço natural do prazer. Apanhava, protestava para não ficar mal, levantava-se, sacudia-se e partia para cima do adversário, dando-lhe uma "revienga" de fazer corar até o mais experimentado dos "amigos do alheio" lá do bairro. O seu futebol era feito de alegria e de prazer, de técnica e de arte pura.

Os anos passaram e perdemos o contacto. O Bruno tornou-se profissional do pontapé na bola e eu, como adepto, tentei seguir o seu trajecto, desde o tirocínio por clubes de menor dimensão até a afirmação natural, mas talvez tardia, no Marítimo. Da experiência falhada no FC Porto ao regresso à Madeira. Em certos momentos, vi o Bruno a jogar sem alegria. Sem a malícia do futebol de rua. Emparedado entre tácticas e exigências da mais variada espécie. Confesso que não gostei. Cheguei a pensar que o futebol do meu amigo tinha sido vítima de um homicídio encomendado pelos "mestres da estratégia" e pelos "doutores da bola".

Foram tempos duros para o Bruno. Entre losângulos e rectângulos a sua arte desapareceu numa espécie de triângulo das Bermudas.

Os anos passaram e a idade, esse impiedoso e traiçoeiro inimigo, foi-se acumulando nas suas pernas.

Ele já acabou,

gritaram alguns,

já não corre

sentenciaram outros

metam o suplente

esganiçou-se parte da plateia.

A verdade é que o Bruno não saíu. Recuperou forças e, se calhar por sentir-se mais liberto, partiu para cima do adversário. Aos 35 anos, o Bruno Alves e o Sapunaru parecem-lhe agora tão fáceis como o "Papa Bolos" e o Paulo o "Russo". Para ele, o jogo voltou a não ter segredos e a ser vivido com a alegria dos 14 anos, quando paus serviam de balizas e o prémio de jogo era a milhanga no bar da bomba. Afinal, não é isso o futebol?


3 comentários:

il _messaggero disse...

Bom texto sobre um dos jogadores com mais potencial que vi jogar nas equipas madeirenses (e em especial no meu Marítimo).

Em minha opinião, tivesse tido mais cabeça e a sua enorme mais valia seriam bem mais afamadas e reconhecidas, transpondo as naturais barreiras geográficas da ilha.

No entanto, galgou um longo trajecto que lhe permitem ser reconhecido desde há uns tempos a esta parte, como um dos símbolos vivos do clube. E assim ficará para história.

Enquanto o ocaso definitivo não chega, brinda-nos semana após semana com aquele toque e perfume característico dos escolhidos, como um semideus que ousou pisar o topo do Olimpo [ehe momento (rebuscado) à Luís Freitas Lobo deste pequeno comentário]. E tal como a mitologia grega, também este semideus teve e tem os seus defeitos. No entanto, para mim e para muitos, será sempre o capitão e é um enorme prazer vê-lo jogar com aquele leão ao peito.



post scriptum: Boa sorte para o novo espaço. Que a qualidade dos textos se mantenha ;)

Sancho Gomes disse...

E continuo a achar que a experiência no FCP só coreu mal porque na altura estava lá um fantástico Deco.
O "Cabeças" é, sem margem de dúvidas, um dos 4 melhores "números 10" dos últimos 20 anos. E está a jogar à bola...

Sailor disse...

Caro Gonçalo, por momentos recuei àqueles tempos em que chegava a casa todo transpirado (por vezes nao escapava de um tabefe, quando tambem a roupa dizia tudo o que tinha acontecido)... quando o dia ja nao era mais do que uma miragem e as dores no corpo (consequencias dos tais artistas caceteiros) só nos ajudavam a dormir melhor e a sonhar com novas jogadas para o dia seguinte...
Relembrei tambem as balizas feitas de dois pedregulhos e a escolha das equipas feita através de um método que tinha ja armazenado num canto recondito das minhas memorias: os dois capitães de equipa afastavam se um do outro uns passos, depois, um de cada vez, colocava um pe colado e à frente do outro ate chegarem perto do adversario. Nessa altura, quem chegasse ao pé do adversario, sem o ultrapassar, era o primeiro a escolher. Relembro tambem a cara tristonha dos menos prendados para as artes futebolísticas à espera de serem escolhidos e a desesperarem...
E depois... depois era tudo o que muito bem resumiste no teu texto, todas aquelas fintas de alegres e Futres putos...
Tambem eu tive (agora apenas conhecidos) amigos, desses que participavam nesses futebóis de encantamento, que mais tarde se distinguiram (até no meu Benfas) no nosso mundo da Bola...
Gonçalo, Amigo Madeirense, O meu muito obrigado por fazeres as minhas memórias transbordarem de deleite...