27.4.09

Um puto de 16 anos

Aos 16 anos, acreditava plenamente que cometia um pecado quando, secretamente, ouvia o Fernando Tordo cantar Ary dos Santos. Era um segredo só meu. O meu tio, que estudara em Lisboa e que conhecera o Ary e o Tordo, arranjara-me uma k7 que eu ouvia até à exaustão num walkman branco da Sony, cheio de botões para amplificar e para alterar o som inqualificável daquela gravação feita às três pancadas.

Era um pecado privado. Um segredo meu e do meu walkman Sony. No meu grupo de amigos passava-se dos "velhinhos" Pink Floyd para os Pixies, transitava-se pelos Sonic Youth, depois pelos Nirvana, pelos Pearl Jam e pela música electrónica rasca daqueles tempos, com os Tecnotronic e o seu Pump The Jam à cabeça. Eu ouvia tudo, mas era o Tordo, o Cohen e mais tarde o Tom Waits e o Jacques Brel que não me saiam da cabeça.

Quando cheguei à faculdade, logo no primeiro ano, apanhei um concerto do Fernando Tordo. Na reitoria da "clássica", creio eu. Discretamente, comprei o bilhete e lá fui sozinho misturar-me com uma plateia mais velha do que eu (salvo honrosas excepções. O pecado não era só meu, como descobri nessa noite) e ver, ao vivo, um dos melhores cantores que conhecia. E que conheço. E ouvir coisas como esta:

Minha laranja amarga e doce
Meu poema feito de gomos de saudade
Minha pena pesada e leve
Secreta e pura
Minha passagem para o breve
Breve instante da loucura
Minha ousadia, meu galope, minha rédia,
Meu potro doido, minha chama,
Minha réstia de luz intensa, de voz aberta
Minha denúncia do que pensa
Do que sente a gente certa
Em ti respiro, em ti eu provo
Por ti consigo esta força que de novo
Em ti persigo, em ti percorro
Cavalo à solta pela margem do teu corpo
Minha alegria, minha amargura,
Minha coragem de correr contra a ternura
Minha laranja amarga e doce
Minha espada, meu poema feito de dois gumes
Tudo ou nada
Por ti renego, por ti aceito
Este corcel que não sossego
À desfilada no meu peito
Por isso digo canção castigo
Amêndoa, travo, corpo, alma
Amante, amigo
Por isso canto, por isso digo
Alpendre, casa, cama, arca do meu trigo
Minha alegria, minha amargura
Minha coragem de correr contra a ternura
Minha ousadia, minha aventura
Minha coragem de correr contra a ternura

Cantei refrões a plenos pulmões, desafinando como o Zé Cabra. Acabei o concerto feliz da vida e ganhei coragem de confessar o pecado aos amigos mais próximos, correndo o risco de ser apelidado de "ultrapassado!

Tudo isto vem a propósito da forma como Portugal trata alguns dos seus melhores. Na ânsia da "modernidade", na aventura de querer parecer como "os outros", como os ingleses ou como os americanos, varremos para baixo do tapete aquilo que nos parece "ultrapassado". Somos uma espécie de puto idiota de 16 anos, que não quer correr o risco de ficar mal visto pelos amigos e esconde assim aquilo que, na verdade, é a sua mais valia, ou seja, a diferença.

Nas rádios e nas televisões tocam bandas atrás de bandas que repetem até à exaustão fórmulas saidas de um laboratório qualquer no "estrangeiro". Essa programação musical é, claramente, a máxima ilustração do nosso provincianismo e atraso cultural.

Pode argumentar-se que "essas coisas" não vendem. Mas não é verdade. Basta olhar para França, por exemplo, onde os discos do Brel, do Aznavour, da Edith Piaf continuam a vender-se a bom ritmo, sendo reeditados ano após ano. Onde os canais televisivos têm uma programação mais variada, não se limitando aos êxitos do momento. Onde existem milhares de estações de rádio, abrangendo todos os públicos. Onde se inova, sem deixar de olhar para trás, para as raízes da musica popular francesa ou francófona.

Em Portual, felizmente redescobriu-se o fado. Mas a música portuguesa não se limita ao dedilhar da guitarra clamando por Alfama e pela Madragoa. É bem mais do que isso. Tem compositores e cantores de imensa qualidade, que são constantemente desvalorizados pelo nosso medo de parecer mal.

Querem exemplos:

Fernando Tordo, Sérgio Godinho, Pedro Barroso, Fausto, José Mário Branco, etc...

Qual destes viu na televisão recentemente?

Nós somos, repito, uma espécie de "puto de 16 anos", com medo das críticas dos amigos. E é pena

2 comentários:

il _messaggero disse...

Concordo em parte com o post. Há duas variantes que temos de ter em conta:

- a França tem uma quota de produção nacional cultural, que acaba por estimular a sua produção na diferentes áreas culturais;

- caso não tivesse esta quota, o tamanho do mercado é imensamente maior e permite que o mesmo seja apelativo e rentável (olha-se ao exemplo espanhol).

Claro que seria incompleto focar o que escrevi apenas a uma mera decisão política ou a algum mero prisma económico. Mas estas variantes influem.

Pessoalmente, não sou apologista de quotas nas rádios ou imposições do género. Aliás, creio que como pequeno país que somos, ganhamos em receber tantas influências culturais externas (exemplo dos filmes que a exemplo da Holnada somos dos poucos a legendar os mesmos, fazendo porventura com que tenhamos uma maior apetência linguísta que outros povos latinos).

Agora, há que haver uma certa protecção às produções culturais portuguesas. Não pode haver um esmagamento e uma asfixia não dando espaço às produções e criatividade nacionais.

A resposta poderia sair de uma maior aposta e inclusão destas matérias na educação primária. A criatividade deve ser estimulada neste importante estádio.

Não é à toa que, por exemplo, a Suécia com 8 milhões de pessoas, consegue por mais bandas no circuito internacional que Portugal com 10 milhões de pessoas. Claro que nós temos educação musical, mal e porcamente por 2 anos, sendo por norma um meio com uma conotação algo elitista. Eles dedicam cerca de quase 27% da já de si grande fatia cultural dada aos conselhor musicais, e esforçam-se por alargar o ensino da mesma a todos.

Mas retornando ao tópico, concordo que há muito desprezo pela boa música que cá se vai fazendo.

Sancho Gomes disse...

Sinceramete não acho que o problema resida num alegado desprezo dos portugueses pela música (a artes em geral) nacional. Por isso, acho que as quotas não resolveriam o problema, antes pelo contrário: serviriam para dar ainda mais projecção a emanueis e outos que tais. O problema reside no facto dos portugueses terem mesmo mau gosto. E isto só vai lá com educação de públicos e com o progresso enquanto povo. Enquanto isso não suceder, certamente que apenas meia dúzia de "proscritos" continuarão a admirar a genialidade de Zeca, Zá Mário Branco, and so on...