19.6.09

Doca do Cavacas






A propósito da nostalgia provocada pelas palavras da WOAB, dei comigo a escrever este texto. Ainda estive para não o publicar, mas já que tinha sido escrito aqui no blog...

O dia está quente. Quatro horas da tarde, num qualquer dia de Agosto, com um vento de leste, nunca é hora agradável para se estar ao sol na Madeira. Ainda que se esteja junto ao mar, ainda que mergulhemos de 15 em 15 minutos!
Os corpos, que ainda não abandonaram definitivamente a forma infantil, resistem dificilmente e deles brotam generosas gotas de suor. Corpos exauridos, é certo, mas jovens e tonificados, derretem e a brisa marítima é parca compensação para a tepidez do ar que sufoca. A água, apenas a água salgada do Atlântico pode abrandar a canícula ardente.
Claro que nas piscinas não é possível estar muito tempo sossegado. Frequentemente aparece aquele bando que, em grande berraria, aproveita para se atirar de qualquer penhasco. À primeira vista, parece que apenas querem importunar os veraneantes mais incautos: ora cobrindo-os com a chuva miudinha, de água salgada, que os seus saltos provocam, ora afastando-os das piscinas, como se fossem a guarda pretoriana de um qualquer imperador invisível. São jovens; têm sonhos; querem viver desalmadamente. Perante a explosão de cores do ambiente que os envolve, o maniqueísmo domina o seu mundo: há “nós” e há os “outros”. Aquele promontório, composto por rochas e piscinas, algumas naturais, outras nem por isso; aquela espécie de lido, é o seu domínio e estão dispostos a tudo para o defender. Pelo menos assim parece a um olhar menos atento.
A verdade, é que a sofreguidão com que se atiram para a água mostra que não são os “outros” que incomodam, não é contra os “outros” que mergulham. Não querem este reino apenas para si. É certo que se reconhecem súbditos do Majestoso Penhasco e do Mar Imenso. É verdade que se revêem como a legião de elite daquele local. Mas os mergulhos, a ansiedade com que se atiram para a água revelam uma realidade mais egoísta. Seguem em bando, mas o prazer é individual. Estão integrados, têm um, dois, três grupos, mas na hora de mergulhar, a água proporciona um deleite pessoal. São fugas para a água, para pequenos momentos íntimos de liberdade.
O mar aparenta ser o melhor amigo. Entram nele como quem mergulha no ventre materno. Com alegria, com sofreguidão. E como adoram mergulhar! Nenhum local é demasiado alto, nenhuma rocha é demasiado afastada da água. Saltam de qualquer ponto. Como se nada mais existisse. Parecem aves, quando, empoleirados sobre as rochas, levantam os braços e saltam para a frente, em ligeiros mas consistentes movimentos dorsais que lhes permite mergulhar de cabeça. Pernas esticadas, braços abertos, que se inclinam apenas na hora de abraçar os domínios de Neptuno.
O universo é deles e é bonito: o azul-esverdeado das piscinas, que contrasta com o azulão imenso do mar. Deixam-se beijar pela água, ora num, ora noutro mundo que é, no fundo, apenas um. E não fazem distinções, no que ao prazer toca. Tanto lhes serve!

Há, também, os outros dias. Quando todos os restantes veraneantes fogem da levadia que inunda as piscinas, eles correm ao seu encontro. As ondas estão fortes? Ameaçam levar todos aqueles que ousam entrar na água? O branco da espuma impõe-se sobre o azul do mar? A rebentação contra as rochas ameaça os frágeis corpos? Existe a certeza de que alguns litros de água salgada serão engolidos? Óptimo, pois garantem o prazer de não se atemorizar. E, paradoxalmente, como um bando de loucos, tanto mais riem quanto maior o perigo. Deles e dos outros.
Mas ali, naquele tempo, não há quem os ouse desafiar. Ninguém se intromete no meio. Alguns adultos ainda vociferam contra a inconsciência destes jovens. Ao longe, protegidos pela segurança. Mas que ninguém ouse pensar em ajudar algum deles, que pareça mais aflito. No meio daquelas ondas, apenas eles são capazes de se ajudarem mutuamente. “Nem pense nisso”, alertam os que os conhecem, se algum herói ousado pretender mergulhar ao seu lado. “É garantido que eles terão de o ajudar e para problemas, já lhes bastam as ondas com que ainda terão de se bater”.

Era assim as Poças do Gomes, há uns anos. Os únicos avisos viravam-se na direcção dos “outros”, daqueles que não passavam ali o Verão e o Inverno.
O tempo entretanto passou: os corpos envelheceram, ganharam peso, perderam a cor. Mas continuo convencido de que nas tardes de levadia, apenas o velho bando é capaz de se manter à tona. Mantém-se a garantia de que aquela guarda pretoriana será a única a ousar desafiar o mar, naquele que se mantém como o seu mundo. Apenas estas coortes continuam a ser merecedoras da confiança do Imperador e resistem à sua fúria!
Por isso atenção, meninos e meninas de calções alaranjados. É certo que são os vossos corpos que estão tonificados. Talvez a vossa forma física vos garanta alguma segurança, nas provas a que são submetidos. Conseguem nadar mais longe; sustêm mais tempo a respiração. Mas ali, naqueles redemoinhos, quem manda ainda somos “nós”. E já estamos velhos para nos batermos contra as ondas, em defesa dos vossos belos corpos!

É sempre com este misto de nostalgia do passado e o confronto com a realidade que volto à Doca do Cavacas. Porque pertenço a esse velho bando de pássaros…

4 comentários:

Woman Once a Bird disse...

:) Grande texto.

Anónimo disse...

Simples mas tocante!

Rubina Berardo disse...

Faz lembrar 'the cleft' de Doris Lessing, como se tratasse de um tempo antes do tempo.

Su disse...

li..reli....
excelente
jocas maradas