31.12.06

Cuidado com o ditador

A justiça iraquina matou o seu antigo ditador. Nestas coisas obituárias, e depois de vermos o morto, há sempre um sentimento que nos invade que nos faz expirar aquele inevitável “Coitado” (a minha mãe, por exemplo, ou mesmo algumas das minhas tias, soltaram um coitado demasiado prolongado que me deixou preocupado).
Nós somos assim a lidar com a morte. Ainda este ano, prestamos homenagem sentida ao Camarada Vasco e a Álvaro Cunhal, conhecidos inimigos da democracia mas reconhecidos amigos de regimes responsáveis pela morte de milhões. Sei que milhões, na linguagem estalinista, significa uma simples estatística, o que por certo deve perdoar-lhes a ousadia e a intromissão no assunto. Mas a memória, ou a falta dela, é um problema ocidental grave (pronto, reconheço que a ténue possibilidade de uma tal de Ségolène chegar ao poder na França também me deixa preocupado).
Esquecer o que Saddam verdadeiramente foi, como esquecer o que Álvaro Cunhal representou, não é apenas uma questão de memória selectiva que nós jogamos bem no fundo sempre que um actor comprometido desaparece de cena. E por uma simples razão: a homenagem ao carrasco limpa e desculpabiliza os seus actos, transformando-o em pretensa vítima. E isso, por uma questão linear e óbvia, é uma falta de respeito grosseira pelas verdadeiras vítimas: todos aqueles que às mãos do sanguinário regime morreram por simples arbitrariedade, diferença, mesquinhez ou maldade. É por eles que não devemos trair a sua memória. Nem a nossa.