Ainda hoje, perante a desagregação dos principais sistemas que têm regido a cultura do Ocidente, há quem não se tenha apercebido de que, de entre as ruínas mais ou menos esplendorosas que nos restam das ortodoxias de um lado e outro, uma luz surgiu, a luz de uma nova aventura do espírito humano, sob o signo da liberdade. Essa aventura visava a restituir a unidade do espírito, restabelecer o homem no universo, recuperar as energias na plenitude do desejo, libertar o homem das apertadas malhas em que durante séculos o comprimira um racionalismo desenraizado, sem consonância com a vida. Pretende-se hoje que o movimento que consubstanciou este ideário, o surrealismo, deixou de ter qualquer vigência. A verdade, porém, é que, na sua essência, a aventura perdura, porque com este ou outro rótulo, a poesia continua, sob o mesmo signo, a ser o lugar dessa aventura e desse debate espiritual, que é porventura o maior e mais significativo do nosso tempo. É o homem que a si mesmo se pretende encontrar e para isso não receia arriscar a razão e a própria vida. Essa luta poderá ter custado, pelo menos a alguns, tão terrível preço. O suplício moderno, como dirá Octavio Paz, consiste na presença contínua da consciência estranha ao nosso corpo. É a separação e o sentimento do absurdo. E a revolta. E a tentativa de unir o que está cindido, de estabelecer a unidade perdida e reconquistar uma nova consciência original, elementar. O homem no homem, o homem no universo, a vida de novo na sua ardência primeira, o esplendor da criação, a aliança entre o sonho e a realidade, a identificação dos contrários, a comunhão fraterna – tudo se consubstancia neste sonho que não é sonho, pois que ele é a realidade primeira e a única realidade a conquistar. A poesia tende à essência humana. Ter-se-á sabido fazer justiça a esta extraordinária revolução que transformou o espírito humano, que o identificou com a liberdade – «Liberte couleur d’homme»? A finalidade da poesia é estabelecer a integração imediata do homem no mundo através da combustão verbal, salvar o mundo e o homem no seu encontro e na sua unidade. Pela imaginação poética – e só por ela – todas as energias do universo ascendem à palavra, como afirma Gabriel Bounure.
António Ramos Rosa in Poesia, Liberdade Livre, Lisboa: Moraes, 1962, pp 11-12