Enquanto o pessoal se diverte com a comédia do canudo do primeiro-ministro, o Dr. Barroso, pela calada, quer impor a lei e a ordem aos europeus mais renitentes. Vai daí propõe-se fazer esquecer o incómodo dos referendos, pedindo aos estados-membros mais atrasados que aprovem o projecto europeu via assembleias nacionais. O Dr. Cavaco, um brilhante homem da direita portuguesa, aproveitou a deixa e decidiu por si enviar uma espécie de recado ao governo, onde mostra a concordância com tão dignificante assunto de estado. O pensamento do Dr. Cavaco é simplório como os seus costumes: os referendos são qualquer coisa de inútil e uma estuporada perda de tempo, onde só se gasta latim e dinheiro desnecessários.
Na verdade, no projecto europeu, alguns vírus são mais contagiosos do que outros, mas o bom senso devia mandar que nada se fizesse nas costas dos europeus. Entrementes não há nenhuma vacina prevista, o que quer dizer que o referendo holandês e o francês de pouco serviram aos incautos. Pior que errar só mesmo insistir no erro.
Claro está que o Eng. Sócrates já se mostrou aberto à irrecusável proposta. No fundo, um referendo implica uma posição, e uma posição implica uma explicação. Como não parece haver gente interessada em explicar nada convém evitar o tortuoso caminho até porque a principal estratégia europeia passa precisamente por não explicar coisíssima nenhuma sobre o que é a Europa, o seu projecto, as suas consequências, os seus benefícios, as suas vantagens e desvantagens. Eu próprio reconheço que explicar o vazio é complicado. Aliás, não deixa de ser absurdo que a própria União não tenha um único fundo destinado a explicar a Europa aos europeus. Principalmente aos mais ignorantes, aos eurocépticos, aos eurocalmos, como o Dr. Portas, e aos que não vêem na pretensa União grandes garantias de sucesso. A psicanálise também podia ser uma possibilidade, mas o Dr. Freud há muito se retirou de cena.
Não muito longe daqui, o Dr. Barroso continua a viver ou numa realidade paralela ou numa realidade que ele se recusa ver (riscar o que não interessa). E desconfio que ele não seja o único: há mais vida além da quinta dimensão e dos corredores de Bruxelas, onde alienados é coisa que não falta. Os mais atentos, os cidadãos comuns e mortais, sentem na pele a legislação absurda que daquele manicómio todos os anos é emanada e que serve, posteriormente, para legitimação dos respectivos governos nacionais. Desde o tremoço ao tamanho das laranjas, da tasca ao cabeleireiro, passando pelo indefeso amendoim e a desgraçada da palmeta, nada escapa à fúria burocrática de Bruxelas.
Eu não sou contra a União Europeia. Há que reconhecer que foi a entrada neste projecto que nos colocou (aos portugueses em geral) mais perto da civilização e de outros costumes há muito arredados das redondezas. Mas esta nova ideia de Europa que nos querem impingir (sem nada explicar, convém recordar), incapaz de se insurgir com firmeza contra o rapto de cidadãos britânicos pelo Irão por exemplo, mas capaz de legislar sobre tudo e sobre todos, continua a querer dar passos maiores do que a perna. Em política, é devagar que se vai ao longe.
Entretanto, o descontentamento sobe, o desemprego aumenta, a ancianidade e a decadência demográficas aterraram por estas bandas e a competitividade é uma agradável miragem. No mundo todos os dias, os novos blocos económicos solidificam-se e a Europa, infelizmente, ainda não percebeu que deixou há muito de ser actriz principal da história. Pior: o seu papel é cada vez mais secundário porque a sua fraqueza e inutilidade é por demais evidente. Mas os burocratas continuam alegre e impunemente dispostos a caminhar em direcção ao abismo, liderados agora por esse extraordinário Dr. Barroso, um homem providencial, que à primeira oportunidade um dia nos disse que ia ali e já voltava.
Escusado será dizer que para os eurocratas os problemas não existem porque ignorá-los faz parte dos seus genes e escondê-los não é mais que uma abespinhada missão levada infinitamente a cabo, se preciso for. Contra moinhos de vento é difícil lutar, porque não se combate contra a imaginação. O melhor mesmo é esperar enquanto se assobia para o lado, fazendo de conta que não é nada connosco. Quem sabe uma cabeçada na mesa de cabeceira não nos faz despertar a todos da letargia reinante?