Ao fundo do túnel ergue-se um Estado ameaçador e ninguém parece preocupado com tal manobra. O poder transfere-se tranquilamente dos políticos para os funcionários do Estado, sem ondas, sem contestações, sem confrontos ou greves. Tudo às claras, em nome da mais clara das transparências. Weber foi quem melhor nos soube descrever o modo de organizar sociedades complexas e com muitos indivíduos. Mas foi Kafka quem melhor nos demonstrou esse pesadelo, essa desumanidade claustrofóbica e labiríntica a que chamamos burocracia. Ninguém aprendeu nada. É o que apetece dizer. A memória dos homens é na realidade um fenómeno extraordinário e isto é uma prova evidente da sua selectividade. Todos se esqueceram que não pode valer tudo em nome do Estado, em nome dos impostos, em nome de qualquer outra utopia que seja usada para castrar a liberdade e nos colocar, supostamente, no mesmo plano de igualdade. Começou pelo cinto de segurança, pelo capacete na mota e espalhou-se na violenta actual caça aos que fumam, como se todos estes fossem, coitados, um bando de proscritos ou de violadores em série. Qualquer dia proibir-se-á as gorduras, as bebidas com gás e outros derivados. Será obrigatório, por exemplo, correr de manhã e à tarde, comer fruta fresca, muito peixe e cereais ricos em fibra. Todos quererão viver até perto dos 200 anos ou qualquer coisa do género. Depois virá a vida transparente e sem segredos que mostrará quanto ganhamos, o que gastamos, o que comemos, o que usamos, o que fazemos. O Big Brother no seu melhor porque ninguém conseguirá colocar travão nisto, depois de aberta a Caixa de Pandora. Em nome da transparência, em nome do Estado, produziremos então seres amorfos, sem privacidade, sem segredos, sem vícios e, claro, sem liberdade. Talvez aí o pesadelo volte, noutra forma e com outra profundidade. Infelizmente, não é de bom tom esquecer o que tantos outros por nós sofreram em nome dessa coisa tantas vezes esquecida: liberdade. Ainda para mais quando isso custou forte na pele. Não no bolso.