3.11.08

Carta

M:

Insensível à poesia?

Como, se poemas são as seringas contaminadas que vês todos os dias e a luz branca à beira do teu rio e as fotografias velhas que guardas e arquivas de forma quase esquizofrénica? a própria esquizofrenia é poética, vê lá tu!

Não serão figuras poéticas - poetas do novo, edificados com a massa decadente da tua cidade - os náufragos e as putas do Cais do Sodré? As meninas bonitas que enfeitam as noites do teu Lux(o) semanal? Os panascas do Bairro e as suas súplicas histeriónicas em esquinas cor de rosa? Os chulecos e os dealers que vendem farinha como se fosse coca - bons sonhos, camone!

As lágrimas são poesia pura! Como o riso, o sono, o despertar. Morrer é poético. Como nascer. E viver e aprender que há poesia em todos os gestos, no premir de um gatilho embriagado pela revolta suburbana e no sangue que jorra da ferida aberta no coração da cidade e numa mão que extende flores e numa língua que ajuda a soletrar

- g o s t o d e t i
- f i c o
- q u e r o
- s o u
- t e m o
- v i v o

e no primeiro passo de uma criança e no movimento do coveiro e no baque seco da terra sobre o caixão.

As ocorrências dos jornais não serão textos poéticos? Que serão os maus livros senão a mais clara e poética tradução da vida? Não serão os tratados médicos poemas em estado puro? Soletra:

D o r n o c i c e p t i v a
F a c t o r n e u t r ó f i c o d e r i v a d o d o c é r e b r o (BDNF)
M e c a n o r e c e p t o r
M e s e n c é f a l o
M e t e n c é f a l o
P a l i d e z
P a l p i t a ç õ e s
P a r e s t e s i a
P a r o x i s m o
P e r c e p ç ã o

A palidez poderá ser indício de palpitações que conduzirão a uma parestesia seguida de um paroxismo sem que a sensação seja revelada ao consciente através da percepção.

Não será poética a verdade revelada?

Insensível à poesia?

Gonçalo

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