23.7.07

Os amantes

"Voltas a retrair-te e a entregar-te da mesma maneira, a deixar-me na boca o mesmo travo de orquídea, de sândalo queimado e de bruma salina. Acabas agora de me puxar para ti, vagarosamente ao longo de ti, num ritmado movimento que ninguém te ensinou, que retomas sempre com igual cadência e de que nunca inteiramente te aperceberás. Estou já de novo a olhar-te nos olhos, a sorver lentamente a leve crispação da tua boca. Começa o mar a castigar-te os flancos e a resumir, em poucos minutos, uma sonâmbula evolução de muitos milénios, convertendo em pedra o que era peixe, desfazendo em areia o que foi pedra, incorporando cada vez mais pó no volume das suas águas... Passam entretanto pelo céu nocturno cavalgadas de nuvens magnéticas; entre as estrelas mais longínquas estabelecem-se pactos efémeros; e morrem aves nos pântanos da Lua, sob a luz que da terra lhe enviamos. Não sei se principias a gemer, se é a lenha mais alto a crepitar. Luzes, luzes! Luzes soltas no meio da escuridão... Instala-se o firmamento nas tuas entrenhas. O êmbolo do vento acelera-te o ritmo. O teu último gemido, nem o consegues dominar: derrapou no pavor de ser um grito, suicida-se na curva do teu ombro."

David Mourão Ferreira, in Os Amantes e Outros Contos.

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