12.1.07

Ainda sobre o aborto

Caro Bruno, embora comeces o texto "sem grandes certezas", aquilo que escreveste revela precisamente o contrário.

Na questão da discriminalização do aborto, existem questões fundamentais. A primeira é de ordem metafísica e não me parece passivel de grande discussão, ou seja, há quem acredite que a vida começa no momento da concepção e há quem acredite noutra coisa qualquer, portanto, não há volta a dar ao assunto.

As outras, porém, são bem reais. Vamos a elas.

A alteração da Lei garante que as mulheres não serão julgadas por abortarem?

Não. A proposta de mudança diz, apenas, que o aborto será permitido até às 10 semanas, ou seja, continua a ser crime abortar às 11. Ou, se quisermos ser mais radicais, às 10 semanas e um dia. Sendo assim, continuará a ser possivel levar mulheres a tribunal por abortar.

A alteração da lei garante que todas as mulheres terão condições de segurança para abortar? Acabar-se-ão os abortos em "vão de escada"?

Não. Em primeiro lugar, porque obriga quem quiser abortar a identificar-se. Caso a mulher seja menor, os tutores legais terão obrigatoriamente de ser contactados. E autorizar a intervenção. Isso significa, em primeira análise, uma clara "ingerência do Estado" na esfera privada, contrariando a tua tese de liberdade de decisão por parte da mulher (principalmente se tiver menos de 18 anos). Significa, em segunda análise, que muitos casos mais, digamos... complexos, continuar-se-ão a resolver em... vãos de escada. Ou que, em sítios pequenos (Portugal inteiro com excepção de Lisboa e algumas áreas da zona metropolitana do Porto), muitas moças casadoiras terão de contentar-se com a habitual solução das parteiras, para fugir à pressão social que uma gravidez "pré-matrimonial", e subsequente interrupção, necessariamente acarretam. Resumindo, o negócio do "vão de escada" continuará a florescer. A menos que haja uma política correcta de educação sexual e de prevenção, o que não me parece minimamente contemplado nesta proposta. Quanto à liberdade, então, meu caro, acabe-se com a obrigatoriedade de identificação. E acabe-se com o "limite das 10 semanas". Caso contrário, estaremos a falar de outra coisa qualquer que não a tal "liberdade de escolha".

Concordo contigo quando dizes que conheces bem as pessoas. E até acrescento que sim, acredito que em algumas esferas sociais o aborto pode vir a ser encarado como uma espécie de contraceptivo final.

Também estamos de acordo quando dizes que não existem sociedades ou homens perfeitos. Acho, apenas, que a alteração da Lei terá tão poucos resultados que não justifica que por ela se ponha em causa o princípio basilar, ou seja, o do direito à vida. Se quiseres, é uma questão de "deve e haver". Lembras-te daquela história, bem real, por certo, que repetíamos muitas vezes em miúdos, sobre uma equipa que utilizou a táctica do "bola vem bola vai"? No final, a "bola ficou 14 vezes", ou seja, não adianta chutar para a frente sem resolver o que quer que seja.

Vivemos nuna sociedade com claras limitações cognitivas e de percepção da realidade. Ainda por cima, fortemente marcada pelas doutrinas mais conservadoras da Igreja Católica. Achas que neste cenário, uma alteração da Lei iria resolver os problemas que tão bem apontas no teu texto? Parece-me que não...

Post-Sriptum: Irrita-me o folclore do BE e do PCP à volta deste debate. Então a divisão que alguns iluminados que por lá pululam procuram fazer entre "os-ricos-que-apoiam-o-actual-"status quo"-e-que-por-isso-financiam-campanhas-milionárias e os "pobrezinhos"-ingénuos-que-sofrem-e-não-têm-ninguém-que-os-defenda-do-capital-selvagem-e-presumivelmente-das-parideiras-de-vão-de-escada" é bestialmente idiota. A esses, de facto, apetece mandar "à borda merda". Irrita-me ainda o discurso do tigre da Malcata (espécie respeitável, de resto, e que nada tem a ver com esta treta toda).

Abraço